sábado, 14 de junho de 2014

À MERCÊ

Quando comecei a escrever aqui, no auge da pré-adolescência (e lá se vão dez anos desde esse começo!), eu era definitivamente a mais ingênua das criaturas. Ainda acreditava na religião, na TV e nas pessoas. Ainda naturalizava e legitimava os papeis que eram socialmente condicionados pra mim sem perceber que tudo, incluindo aí a minha ingenuidade infantil, foi construído. Ainda buscava ser alguma coisa da qual eu me orgulhasse, e achava que conquistaria isso definindo quem, afinal, eu era. Porque eu realmente acreditava ser uma pessoa definível. Bem vinda eu à famosa crise de identidade típica dos ingênuos, categoria na qual eu definitivamente me inseria com maestria.

É estranho dizer o que se é, uma vez que nunca somos quem pensamos que somos porque estamos sempre tentando ser a melhor versão que podemos de nós mesmos. Ou talvez porque a versão que tentamos mostrar ao mundo sequer seja a melhor, já que até o conceito de melhor é relativo e socialmente construído. A versão que exibimos é apenas aquela que julgamos mais apreciável àqueles que queremos que nos apreciem. Estou errada?

Hoje, depois de dez anos ouvindo essa conversa de poeta sobre se inventar e se reinventar em nome da arte e sobre ser vários, me percebo muito menos rotulável do que podia supor. Estou absolutamente convencida de que meu lado felino me deu sete vidas em uma só, e de que nunca, jamais me enquadrarei em um estereótipo, por mais que tente.

Não sou a mocinha que pareço nessa foto. Não sou a mulher moderna e segura e independente que tento parecer para as minhas amigas quando falo dos meus planos de morar sozinha em um apartamento ótimo e ter um emprego ótimo e um carro ótimo e – é claro - um gato tão antipático quanto eu de estimação. Também não sou a mulherzinha que encarno quando movo mundos e fundos e investigo e pesquiso até no google para saber se o cara que eu gosto também gosta de mim ao invés de simplesmente perguntar pra ele. Até porque, caso você não tenha reparado, no mundo de pessoas rotuláveis e coerentes (e, portanto, irreais), a mulherzinha jamais poderia morar no mesmo corpo da mulher moderna e segura e independente. Pra quem só quer um gato antipático de estimação, não me parece natural sentir tanto medo de gostar de alguém que, por acaso ou azar ou sorte, não gosta de mim. Certo?

Depois de deixar pra trás toda a crise de identidade da adolescência, eu enfim descubro que meu querido “eu” é absolutamente vulnerável às circunstâncias. E, nessas circunstâncias, incluo com letras garrafais o amor, capaz de me transformar na mais sofrida das mulherzinhas que esperam por um príncipe encantado. Não adianta dizer que já passei dessa fase. Não adianta dizer que não tenho mais quinze anos. Enquanto eu tiver um coração, estarei totalmente susceptível a todos os papeis cafonas aos quais nos submete o amor. Enquanto meu coração bater, ainda vou torcer pra que ele venha falar comigo no whatsapp, ainda vou olhar o horário da última visualização, ainda vou abrir uma a uma as fotos em que ele foi marcado no facebook. E depois, quando minha fase mulherzinha passar, vou voltar a sonhar com meu gato antipático e com minha vida ótima e a julgar todas as esposinhas do mundo. E, orgulhosa, vou jurar que nunca, jamais entro de branco na igreja, que não acredito no “pra sempre” e que estou bem assim, obrigada.

Mas hoje, consciente de todas as minhas caras não coerentes entre si, me pergunto: quem sabe por volta dos trinta eu não encontre alguém que me exiba uma versão de si mesmo que me pareça apreciável e me case e tenha gêmeos e uma casa grande e uma vida não menos ótima? É possível que aos trinta o gato antipático já não seja exatamente a ilustração perfeita para a minha vida ótima, porque talvez o meu conceito de uma vida ótima já não seja o mesmo daquele que eu exibi com orgulho para as amigas, simplesmente porque assim me legitimava como uma mulher do século XXI ou, sendo mais pretensiosa, à frente de seu tempo. Talvez aos trinta eu já não queira tanto estar à frente do meu tempo, e talvez já tenha me cansado de revezar entre mulherzinha e mulher independente, porque essa indefinição também cansa. Talvez o sossego, que hoje me atemoriza, um dia me pareça de algum modo apreciável.

Ou talvez não. Talvez eu nunca me canse do amor e de todas as suas variáveis. Talvez eu goste mesmo de ver a mulherzinha e a mulher independente lutando entre si dentro de mim. Talvez eu goste de me sentir ridícula a cada vez que me apaixono e de me sentir segura a cada vez que me gabo por estar solteira e - salvo alguns momentos de pânico - feliz.

A consciência de que sou várias é libertadora porque me isenta da coerência e, ao mesmo, aterrorizante, porque me deixa à mercê do outro e do acaso e do momento e do humor e do dia do mês e da lua cheia e do tarô e da sorte e - ó céus - da vida enfim. Não estou no volante. Eu escolho os caminhos, mas não controlo os caminhos que escolho. E a vida, essa linda, há de me trazer um monte de surpresas que eu nem imagino e inserir no meu caminho pessoas que colocarão em risco vários dos meus planos. Que delícia é viver!