domingo, 1 de março de 2015

DIVAGAR

Os outros passaram pela rua de pedra. Maria permaneceu porque não sabia correr. Talvez porque os dedos dos seus pés se prendessem nas frestas que ficavam entre uma pedra e outra do chão e isso travasse seus passos. Talvez porque ela não soubesse passar por aquela estrada sem flertar com cada pedaço de vida pulsante em cada parte de mundo visível, imaginando também cada parte de mundo invisível e a infinitude dos mundos que cabiam dentro dela. Talvez porque assim, com a alma permanentemente encantada e curiosa, seu caminhar assumisse um ritmo próprio que não acompanhava o ritmo dos outros. Talvez porque ela questionasse a todo o tempo se aquela era mesmo a rota certa, se havia uma rota certa, se não seria ainda mais linda a rota dita errada. E então, ao questionar-se, deixava de marchar.

Os outros desapareceram no horizonte. Maria permaneceu porque não podia se apressar. Talvez porque caminhasse descalça com o objetivo ímpar de sentir inteiramente o atrito entre seus pés e as pedras, e por isso tinha a pele ferida. Talvez porque tivesse medo de chegar ao fim da estrada e descobrir que o fim não passa de uma interrupção brusca e que todo caminhar não é mais do que uma rota sem destino. Talvez porque, no fundo, suspeitasse que todas as rotas, certas e erradas, conduzissem a esse único fim, que não justifica de modo algum toda a pressa do andar. E então, tomada de suspeitas, novamente deixava de marchar.

Maria permaneceu, talvez porque se recusasse a marchar e ter o coração atado. Fez seu ritmo, traçou suas rotas e conduziu seus passos. Parou no caminho quantas vezes quis, para apenas admirar o sol, a sombra de si mesma que o sol produzia no chão de pedras e o modo com que a irregularidade do chão distorcia sua sombra. E pensou no quão belas são as distorções. Desejou ser assim, constantemente não linear e eventualmente fora da rota, até o fim.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

RESSACA

Você não foi, como no fundo eu já imaginava. Minha alma pesada e meu coração sem vergonha já te esperaram bem mais do que deveriam. Até o último segundo eu te imaginei entrando por aquela porta e dizendo que é muito feio não dar ouvidos ao coração. Eu sei, você não diria com essas palavras. Na última semana, listei todas as possíveis palavras que você usaria para dizer isso e defini qual seria minha resposta para cada possibilidade. Rasgo agora a minha lista imaginária, frustrada por você ter contrariado o roteiro que eu planejei com mais amor do que cabe em mim. É ridículo, eu sei.

No fundo, tudo isso é só porque eu queria te dizer que eu fui. Eu fui porque meu narrador interior insistente me dizia que você iria, me pegaria pelo braço e me levaria para qualquer outro lugar. Hoje o que me consola e ao mesmo tempo me apavora é saber que tudo isso vai passar. E que nem sequer vai demorar muito. Duas semanas? Um mês? Só até que a próxima pessoa entre por aquela porta, a mesma pela qual hoje você simplesmente não passou, e me pareça diferente de todas as outras pessoas que passam pra lá e pra cá em um outro ritmo. Não é triste tudo isso?

Não, você não deve achar nada disso triste. Eu sei lá o que você acha, na verdade. Eu sei lá se você ainda lê o que eu escrevo. Já não sei a quantas anda seu coração.

Amanhã eu vou sentir uma ressaca imensa, vou chorar um pouquinho e vou escrever mais um ou dois textos sobre você. Mas a angústia apertada por você não ter ido vai se repetir em mim até que eu me convença de que não era mesmo pra você ir. E, daí em diante, eu já posso escrever outras cartas de amor... 

quarta-feira, 16 de julho de 2014

CARTA ABERTA PARA ALGUÉM QUE VAI EMBORA

Seu voo é amanhã. Suas passagens estão compradas há um mês, mas eu não queria pensar sobre isso. Mas seu voo é amanhã e eu não quero ir com você até o aeroporto. Seu voo é amanhã e eu não sei se vou te ver mais algum dia. Seu voo é amanhã e eu não lido bem com despedidas. Ainda nem sei se estou preparada para receber seus postais. Seu voo é amanhã e eu ainda não disse tudo o que precisava dizer. Queria só mais uma semana, ou quem sabe um mês, ou quem sabe a vida inteira. Seu voo é amanhã e eu não sei como vai ser quando eu ouvir Beatles por aí de novo. Que se dane Let it be ou Love me do. Mentira. Estou ouvindo All you need is love nesse momento e ainda não consigo mandar esse refrão ir ver se estou na esquina porque ainda acredito em nós. Mas seu voo é amanhã às nove e eu ainda não te dei a foto que mandei revelar há mais de uma semana. Seu voo é amanhã às nove, você chega no aeroporto às sete e eu acabo de rasgar a carta que pretendia te entregar, pedindo encarecidamente que você só lesse durante a viagem. Seu voo é amanhã e me parece, de repente, que não cumprimos nem metade dos nossos planos. Seu voo é amanhã e eu sei, eu tenho certeza, de que a vida vai nos separar, mesmo que tenhamos prometido um para o outro o contrário. Seu voo dura doze longas horas e eu pretendo estar muito bêbada quando o avião decolar. Seu voo dura doze longas horas e eu não sei o que fazer depois que a embriaguez passar.

Seu voo é amanhã, por enquanto você fica em mim, mas não sei até quando.

Seu voo é amanhã, eu te amo hoje e eu sei que não vou te amar para sempre, a despeito de qualquer promessa iludida que tenhamos feito olhando nos olhos. 

quarta-feira, 9 de julho de 2014

COMO EXPLICAR PARA O SEU FILHO A DERROTA DE ONTEM

Hoje vi muita gente preocupada em como explicar para as crianças a triste derrota do Brasil na semifinal de ontem. Sei que é doído ver uma criança que até ontem balançava a bandeira e tocava a corneta pela casa chorar pelo fim de um sonho. Sei que machuca ver as lágrimas escorrendo nos rostinhos pintados com tinta guache. Mas precisamos assumir que as crianças têm ainda pouca dimensão do que é uma derrota, cabendo a nós, adultos, mostrar a elas que perder uma copa está muito longe de ser o fim do mundo. Aliás, talvez a copa seja uma oportunidade para apresentar às crianças exemplos palpáveis do que é a vida e de qual a maneira mais bonita e corajosa de enfrentá-la.

A você, que tem essa dúvida de como explicar para o seu filho o que foi a goleada de ontem, sugiro que comece dizendo que a frustração da derrota ainda terá que ser sentida e suportada por nós em inúmeras outras ocasiões, que o mundo ainda vai moer nossos sonhos dezenas de vezes e que as pessoas e fatos não operam de acordo com nossas vontades e expectativas. A vida é exatamente assim, não? Uma sucessão de perdas e ganhos que muitas vezes vêm em momentos que não poderíamos prever.

Eu diria também que o jogo de ontem é um ótimo exemplo dos fatores que conduzem a uma vitória limpa e merecida: preparo, dedicação, coragem e, é claro, o famoso “na hora certa e no lugar certo”. Quanto antes compreendermos isso, mais preparados estaremos para marcar o gol quando chegar a hora certa e quando a vida nos conduzir aos lugares certos.

Em seguida, sugiro que você diga que, muito antes do futebol, há inúmeras outras questões que fazem o sucesso ou o fracasso de um país, e que se o dia de ontem foi um “vexame histórico”, a história do Brasil com certeza pode nos mostrar diversos outros vexames bem mais vergonhosos, e que contra esses episódios sim nós deveríamos nos revoltar. Depois, sugiro que você explique para a sua criança que nossos sentimentos de orgulho e vergonha têm que ser menos frágeis e inconstantes, que perder não é necessariamente vergonhoso, que ganhar não é a única coisa que importa, e que o nosso patriotismo não deve estar à mercê de uma vitória na Copa do Mundo. Por favor, não deixe seu filho odiar a camisa amarela, jogar fora o álbum de figurinhas ou repetir que coisas assim “só acontecem no Brasil” só porque a seleção perdeu ontem. Diga a ele que o David Luiz, o Tiago Silva e tantos outros não deixaram de ser admiráveis do dia para a noite e que ser fã do Neymar ainda é permitido. Diga a ele com muita convicção que o Brasil não precisa ser o país do futebol para sempre, que morar aqui não se tornou melhor ou pior de ontem para hoje, que nosso orgulho e nossa honra não podem estar apoiados no que, antes de mais nada, é um esporte.

Por último, eu proponho que você diga ao seu filho que todas essas pessoas que machucam outros torcedores, incendeiam ônibus e depredam o patrimônio público imbuídas pela revolta do fracasso são o exemplo claro de como não se deve agir diante de uma frustração, e que talvez essas pessoas não tenham tido a chance de ouvir tudo isso de seus pais. E, para finalizar, espero que você saiba dar o exemplo ao seu filho de como lidar com situações que não vão de encontro ao que gostaríamos: com tristeza, sim, afinal sempre será nosso direito sentir a dor, mas também com respeito, resignação e – por que não? – docilidade. 

segunda-feira, 7 de julho de 2014

CARTINHA DE AMOR

Querido,

Escrevo essa carta sem a pretensão de que ela possa cruzar nossos caminhos. Escrevo na esperança de que a palavra escrita me salve ou me liberte antes do tempo do luto, que costuma ser sempre longo, indigesto e um pouco doído. Até gosto dessa dor e de toda a poesia que ela me rende, mas por alguma razão dessa vez eu preferiria te eliminar de vez de todos os cantos em que seu nome ecoa dentro de mim. Mas são tantos...

Escrevo esperando que todos esses sentimentos em constante colisão dentro de mim passem definitivamente da minha alma para o papel em branco (e não voltem). Escrevo para antecipar esse fim, que mais cedo ou mais tarde virá. Percebe? Mais cedo ou mais tarde você transitará para o campo da memória e seremos um para o outro apenas a doçura da lembrança - essa sim eterna. Melhor assim.

Lá se foram dois parágrafos e você continua em mim. Não era pra ser desse jeito. O meu plano era que, escrevendo, eu te matasse do lado de dentro e expelisse para o papel todo esse amor bobinho que, de tanto sonhar, já não sabe o que fazer. Mas não. Você se multiplica descontroladamente dentro de mim e eu simplesmente não sei como lidar.

Encerro aqui a mais bobinha de todas as cartinhas de amor que já escrevi. Relendo agora, me sinto de volta aos quinze anos. Amar tem dessas coisas, não? Queria mesmo que, terminando de ler, você devolvesse logo o papel para dentro do envelope e viesse correndo me ver...

Com amor,

Silvia

segunda-feira, 30 de junho de 2014

LITERATA DEMAIS

Tenho esse defeito fatal de estar sempre rendida diante do que pode ser posto em palavras. Tenho essa mania tola de ser narradora da minha própria vida, na esperança de que assim ela seja pautada pelo mais intangível dos lirismos.

É essa a minha sina: preciso dizer. Preciso ouvir. Preciso contar histórias. Minha alma é um quarto escuro cheio de letras perdidas por entre medos, amores e sonhos que colidem o tempo todo.

Não aprendi outros sinais que não a palavra. Não te reconheço fora da minha estrofe. Só a linha materializa o nosso amor, mais nada. E, entre uma linha e outra, fica sempre aquilo que eu não posso ou não devo dizer, mas que você já sabe. E, se você sabe, é porque compactuamos essa narração indizível que meu coração arrisca. É porque não estou escrevendo essa história sozinha, e porque dentro de você há também algum lirismo que os outros não veem. Eu vejo. E me deslumbro.

Desconfio seriamente de que não nos amamos. Acho que só nossas poesias se amam e se rimam. Nós não. Nossos caminhos reais não se cruzam porque somos poetas e sabemos que só será lírico enquanto for irreal. Talvez seja mesmo tudo irreal. Talvez seja só o meu narrador, perdidamente apaixonado pelo seu, que se perdeu em algum verso do seu olhar.

sábado, 14 de junho de 2014

À MERCÊ

Quando comecei a escrever aqui, no auge da pré-adolescência (e lá se vão dez anos desde esse começo!), eu era definitivamente a mais ingênua das criaturas. Ainda acreditava na religião, na TV e nas pessoas. Ainda naturalizava e legitimava os papeis que eram socialmente condicionados pra mim sem perceber que tudo, incluindo aí a minha ingenuidade infantil, foi construído. Ainda buscava ser alguma coisa da qual eu me orgulhasse, e achava que conquistaria isso definindo quem, afinal, eu era. Porque eu realmente acreditava ser uma pessoa definível. Bem vinda eu à famosa crise de identidade típica dos ingênuos, categoria na qual eu definitivamente me inseria com maestria.

É estranho dizer o que se é, uma vez que nunca somos quem pensamos que somos porque estamos sempre tentando ser a melhor versão que podemos de nós mesmos. Ou talvez porque a versão que tentamos mostrar ao mundo sequer seja a melhor, já que até o conceito de melhor é relativo e socialmente construído. A versão que exibimos é apenas aquela que julgamos mais apreciável àqueles que queremos que nos apreciem. Estou errada?

Hoje, depois de dez anos ouvindo essa conversa de poeta sobre se inventar e se reinventar em nome da arte e sobre ser vários, me percebo muito menos rotulável do que podia supor. Estou absolutamente convencida de que meu lado felino me deu sete vidas em uma só, e de que nunca, jamais me enquadrarei em um estereótipo, por mais que tente.

Não sou a mocinha que pareço nessa foto. Não sou a mulher moderna e segura e independente que tento parecer para as minhas amigas quando falo dos meus planos de morar sozinha em um apartamento ótimo e ter um emprego ótimo e um carro ótimo e – é claro - um gato tão antipático quanto eu de estimação. Também não sou a mulherzinha que encarno quando movo mundos e fundos e investigo e pesquiso até no google para saber se o cara que eu gosto também gosta de mim ao invés de simplesmente perguntar pra ele. Até porque, caso você não tenha reparado, no mundo de pessoas rotuláveis e coerentes (e, portanto, irreais), a mulherzinha jamais poderia morar no mesmo corpo da mulher moderna e segura e independente. Pra quem só quer um gato antipático de estimação, não me parece natural sentir tanto medo de gostar de alguém que, por acaso ou azar ou sorte, não gosta de mim. Certo?

Depois de deixar pra trás toda a crise de identidade da adolescência, eu enfim descubro que meu querido “eu” é absolutamente vulnerável às circunstâncias. E, nessas circunstâncias, incluo com letras garrafais o amor, capaz de me transformar na mais sofrida das mulherzinhas que esperam por um príncipe encantado. Não adianta dizer que já passei dessa fase. Não adianta dizer que não tenho mais quinze anos. Enquanto eu tiver um coração, estarei totalmente susceptível a todos os papeis cafonas aos quais nos submete o amor. Enquanto meu coração bater, ainda vou torcer pra que ele venha falar comigo no whatsapp, ainda vou olhar o horário da última visualização, ainda vou abrir uma a uma as fotos em que ele foi marcado no facebook. E depois, quando minha fase mulherzinha passar, vou voltar a sonhar com meu gato antipático e com minha vida ótima e a julgar todas as esposinhas do mundo. E, orgulhosa, vou jurar que nunca, jamais entro de branco na igreja, que não acredito no “pra sempre” e que estou bem assim, obrigada.

Mas hoje, consciente de todas as minhas caras não coerentes entre si, me pergunto: quem sabe por volta dos trinta eu não encontre alguém que me exiba uma versão de si mesmo que me pareça apreciável e me case e tenha gêmeos e uma casa grande e uma vida não menos ótima? É possível que aos trinta o gato antipático já não seja exatamente a ilustração perfeita para a minha vida ótima, porque talvez o meu conceito de uma vida ótima já não seja o mesmo daquele que eu exibi com orgulho para as amigas, simplesmente porque assim me legitimava como uma mulher do século XXI ou, sendo mais pretensiosa, à frente de seu tempo. Talvez aos trinta eu já não queira tanto estar à frente do meu tempo, e talvez já tenha me cansado de revezar entre mulherzinha e mulher independente, porque essa indefinição também cansa. Talvez o sossego, que hoje me atemoriza, um dia me pareça de algum modo apreciável.

Ou talvez não. Talvez eu nunca me canse do amor e de todas as suas variáveis. Talvez eu goste mesmo de ver a mulherzinha e a mulher independente lutando entre si dentro de mim. Talvez eu goste de me sentir ridícula a cada vez que me apaixono e de me sentir segura a cada vez que me gabo por estar solteira e - salvo alguns momentos de pânico - feliz.

A consciência de que sou várias é libertadora porque me isenta da coerência e, ao mesmo, aterrorizante, porque me deixa à mercê do outro e do acaso e do momento e do humor e do dia do mês e da lua cheia e do tarô e da sorte e - ó céus - da vida enfim. Não estou no volante. Eu escolho os caminhos, mas não controlo os caminhos que escolho. E a vida, essa linda, há de me trazer um monte de surpresas que eu nem imagino e inserir no meu caminho pessoas que colocarão em risco vários dos meus planos. Que delícia é viver!

segunda-feira, 9 de junho de 2014

ANA

Ana tinha dezesseis anos quando decidiu cursar Cinema porque queria contar histórias. Porque queria dizer às pessoas o que ingenuamente julgasse ser verdade, sem perceber o quão impalpável era seu sonho. Escolheu ser artista porque não se preocupava em ter muito e porque só entendia a vida tecida pelo encantamento. Ana colecionava quimeras.

Ana desistiu de ser artista aos trinta anos. Mais ou menos na mesmo época em que o aluguel subiu, quando já tinha usado todas as suas roupas mais de trinta vezes, quando o tempero do restaurante da esquina se tornou enjoativo, quando se cansou de calçar os mesmos sapatos todos os dias, quando as contas em cima da mesa começaram a empilhar. As quimeras agora empoeiram junto da coleção de vinis, que Ana já não escuta por mera falta de tempo.

Ana tem quarenta e cinco anos, um apartamento mobiliado, um carro razoável, um closet e mais sapatos do que dias no mês. Ana tem um marido, dois filhos, passagens compradas para as férias na Disney e reserva num restaurante da Augusta para a comemoração das bodas de cristal. Ana tem tudo: casa, carro, mobília, família, uma conta no banco e, secretamente, uma pontinha de inveja da menina que era aos dezesseis.

sábado, 7 de junho de 2014

MARIA

Maria já não tinha quinze anos, mas continuava vivendo como quem brinca na montanha-russa. Olhava o mundo do alto da sua pilha de quimeras. Ela queria sentir o sol a pino queimando a pele. Queria amar só por hoje. Queria o clímax do que quer que fosse. Queria apenas a primeira vez. 

domingo, 1 de junho de 2014

EM ALGUM LUGAR DO ETERNO

“Não espere nada de mim” – ele disse antes de quebrar a minha redoma. Eu não sabia lidar com aquela despretensão. “Leve” – ele me pediu antes de me beijar. Nunca tive uma alma leve, é o que eu teria dito se houvesse algum intervalo de tempo entre seu sussurro e sua boca. Enquanto ele se apropriava de mim, eu tentava inventar um modo de compreender que a vida podia valer a pena só por aquele instante. Me causavam vertigem todas aquelas sensações não planejadas, mas pouco a pouco fui deixando de me pertencer de modo tão rígido e me permitindo estar à serviço do instante sem me preocupar se tudo aquilo seria ou não recriminável. Suas mãos deslizavam desmistificando minha cintura. Comecei a me deixar levar por aquele amor que não exigia nada de nós. E eu vi escapar um sentimento bonito e novo de dentro de mim, saindo por alguma fresta que ele abriu sem o menor esforço. Me permiti estar à mercê das nossas almas puras e dos nossos corpos curiosos. Sem ter o que esperar, ficamos ali, presos naquela iminência quase adolescente a que nos submetia o agora. Eu também já não queria ter o que esperar. Eu também já não precisava do amanhã como o destino mais óbvio. Eu tinha entendido que nós não tínhamos sido feitos para durar, mas que assim, sendo tudo tão fugaz e tão poético, é que permaneceríamos um no outro de um modo bom. Se houvesse o dia seguinte, não teríamos tanto zelo com aquela noite. Se houvesse um plano, nós não cumpriríamos. Então era aquele o nosso pacto. Era daquela recordação que precisávamos. E o nosso reencontro ficaria assim, perdido em algum lugar do eterno.